Saúde

Dor feminina: por que ainda não é levada a sério?

Ela sente dor. Mas será que é ouvida? Um estudo recente publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS, 2024) confirma o que muitas mulheres relatam há anos o sistema de saúde trata a dor feminina com menos urgência e seriedade do que a dor masculina. Os dados são alarmantes — e, infelizmente, coerentes com uma longa história de invisibilização do sofrimento físico das mulheres.
O que o estudo revelou?

Pesquisadores das universidades de Harvard e Tel Aviv analisaram 21.741 atendimentos hospitalares de emergência, cruzando variáveis como sexo do paciente, tempo de espera, administração de analgésicos e interação com profissionais de saúde. Os resultados mostraram que:

• Mulheres esperam, em média, 16% mais tempo para serem atendidas do que homens em situações de dor aguda;
• Recebem menos analgésicos opioides e mais analgésicos leves ou placebos;
• São menos questionadas sobre a intensidade, localização e evolução da dor.

Esses dados se mantiveram independentemente do sexo do profissional que realizou o atendimento — indicando que o viés é estrutural, e não apenas interpessoal.

A história da medicina moderna é marcada por uma visão androcentrista. Durante muito tempo, os homens foram o padrão de pesquisa — física, psíquica e farmacológica. As mulheres, quando consideradas, eram vistas como "instáveis", "mais emocionais", "menos objetivas".

A figura da “mulher histérica”, por exemplo, atravessou os séculos como uma caricatura que ainda hoje influencia a forma como o sofrimento feminino é interpretado.

Essa cultura afeta diretamente diagnósticos e tratamentos.

A endometriose — doença que atinge uma em cada dez mulheres em idade fértil — leva, em média, 7 a 10 anos para ser diagnosticada, mesmo com sintomas severos.

A fibromialgia, a dor pélvica crônica e a síndrome do intestino irritável são outras condições com alta prevalência em mulheres e longos históricos de negligência clínica.

A dor é real — e merece ser respeitada

Em uma revisão sistemática publicada no British Medical Journal (BMJ, 2019), pesquisadores identificaram uma tendência global de subavaliação da dor feminina, especialmente quando não é acompanhada de sinais clínicos “objetivos”, como febre ou alterações em exames laboratoriais.

Mas a dor é uma linguagem do corpo — e como toda linguagem, precisa ser escutada e compreendida.

Negá-la ou minimizá-la não apenas perpetua o sofrimento como também atrasa diagnósticos, agrava quadros clínicos e enfraquece a relação de confiança entre pacientes e profissionais.

E no Brasil?

Estudos específicos sobre o viés de gênero no atendimento médico no Brasil ainda são escassos, mas os relatos são abundantes. Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da USP em 2022 apontou que 36% das mulheres atendidas em prontos-socorros relatam sentir que sua dor foi minimizada por profissionais de saúde.

Essa negligência é agravada por recortes de raça e classe: mulheres negras e periféricas têm ainda mais chances de serem desacreditadas.


O que pode mudar?

Reconhecer o viés é o primeiro passo. Mas é preciso ir além.

• Formação médica com perspectiva de gênero: incluir nos currículos disciplinas que tratem da saúde da mulher não apenas sob o prisma reprodutivo, mas na complexidade dos seus sintomas e vivências.
• Revisão de protocolos de atendimento: para que critérios subjetivos de dor não sejam ignorados.
• Mais pesquisas clínicas com mulheres: para garantir tratamentos adequados e seguros.
• Escuta ativa e empática: porque escutar é tão terapêutico quanto medicar.

A dor feminina não é drama. Não é exagero. É um alerta.

Estudos como o publicado na PNAS são fundamentais para expor as falhas de um sistema que ainda precisa aprender a ouvir — e a respeitar — os corpos femininos.

Mais do que estatísticas, estamos falando de vidas. De histórias.

De mulheres que, todos os dias, enfrentam o desafio de provar que estão sentindo o que só elas sabem.

É hora de mudar.